BOLETIM DE NOVIDADES ESPECIAL PARA OS INIMIGOS DA INTRIGA
* Afinal, os governos de cá e de lá valorizam os trabalhadores com as novas medidas, garante um empregado de mesa
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A zona da Sé chama turismo neste sábado, apesar dos chuviscos. |
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Avenida Arriaga: as colgaduras na Junta Geral (travestida de governo) dão sempre um ar solene a estas quadras. |
A chuva não desencorajou os passageiros dos dois paquetes atracados à Pontinha e lá se entregaram eles aos alegres passeios turísticos pela baixa. A zona do Mercado continua movimentada e o centro da Sé também. O pior são as esplanadas: os orvalhos molha-tolos flagelam chapéus, mesas e cadeiras, de tal forma que se desertificam os espaços comerciais
e as caixas registadoras.
No Apolo, os fregueses do café concentram-se nas mesas interiores e no balcão, e é neste, no balcão, que os indispostos irrecuperáveis descarregam a sanha, as frustrações e as indignações da vida.
Aquele freguês de longos cabelos frisados e alvos, apesar da relativa juventude, só não abateu a bica de um trago porque ela devia estar a ferver. Mas notava-se-lhe uma pressa desesperada de fugir do local.
É que, no plasma ao canto do bar, Passos Coelho arengava uma conversa que o ruído ambiente não deixava decifrar.
- Bom rapaz aquele - ironizava um cliente - Aquele e o daqui da Madeira, juntos, arruinavam a empresa mais rica do mundo, se lha pusessem nas unhas.
- Desculpem - intervém um empregado de mesa enquanto faz trocos na registadora -, mas pelo menos eles estão a valorizar mais o trabalhador.
O do cabelo frisado e branco abrandou a pressa de beber o café, parecia um pouco aliviado.
- A valorizar o trabalhador? - intromete-se um sujeito com ares de contínuo de escritório, que acabou o raciocínio apesar de a mulher lhe sugerir moderação, com uma cotovelada - Só se é você o valorizado. O que eles estão a fazer é chupar até ao tutano o pouco dinheiro que recebemos.
O empregado interrompe as contas para se explicar.
- Acho que eles estão a valorizar o trabalhador. É a minha opinião. Vejam o que eles acabam de fazer com as reformas. Eles querem-nos a todos nós no activo até andarmos de bengala. Isto não é mostrar que fazemos falta? - o cliente talvez contínuo de escritório desiste de contrariar, percebendo a ironia, mas o empregado empertiga-se quando percebe que todo o balcão pende da sua dissertação - Para mim, a reforma devia ser aos 80, ou aos 90. Uma pessoa fica em casa a fazer o quê? A cuidar dos netos, não, porque os pais dos netos agora têm tempo para isso, estão a ir todos para o desemprego. A ver televisão, também nem pensar, porque já se conhecem as caras que o telejornal mostra todos os dias. Então, tudo a trabalhar. Acho que aquele (Passos Coelho) e o outro daqui (Jardim) fazem muito bem.
Deputados: um mandato e reforma por inteiro!
Um freguês habitual salta com a sua opinião.
- Não se pode condenar só os que governam. Há leis que são feitas nas Assembleias e não pelos governantes.
Foi o que o mesmo empregado de mesa quis ouvir.
- Ah, mas as leis que os deputados fazem merecem toda a confiança do povo, aí estamos descansados. Aquilo acolá em baixo (Assembleia Legislativa da Madeira) trabalha-se. Eu até me ponho a pensar às vezes... por que é que não se exige apenas um mandato para eles terem direito à reforma?! Eles iam acolá 4 anos anos e depois voltavam para casa com a reforma por inteiro mais as mordomias da ordem - aqui o tal guedelhudo agitava-se com o empregado que o servira para pagar o café a todo o vapor e raspar-se - Só as noites que os deputados passam em branco, a tentar inventar soluções para resolver os problemas da Madeira e do país! Se há alguém que merece o dinheiro que ganha, os deputados são exemplo.
O guedelhudo prestes estava a ver-se livre do comício. E um freguês até ali calado, para fazer render o peixe, atirou:
- E depois os deputados são muito religiosos. Ainda ontem vi uns dois ou três ali na Procissão do Enterro.
Quem não gosta de padres é comunista
O empregado recebe o passe com mestria e dá continuidade eficaz à jogada.
- Também os vi, daqui. Se fossem em cima do andor não me admirava, tanto bem fazem ao povo que os elegeu. O bispo e os padres também estavam com cara muito religiosa, todos muito sérios, todos prontos para fazer caridade. É claro que alguns deles têm 'bombas' e os fiéis andam a pé...
- E depois? - interrompe um empregado da copa - Eu tenho carro mas, com os aumentos da gasolina, foi encostado. En-cos-ta-do! Os outros também não podem andar de camioneta?
- Então não podem !- torna o empregado de mesa contestatário - Os padres é que não, porque têm pressa para os seus serviços. Não é? - o empregado dirige-se a um casal pouco habituado a estes ambientes, ali especado à porta do café para ouvir a conversa.
- Este é comunista - sorri o homem para a mulher, que também sorri envergonhada.
O empregado vai à esplanada ver se há fregueses. O bar perde animação e desertifica-se. O empregado volta e desabafa:
- Ouviram? Por eu não gostar de padres, sou comunista. É esta verdade que eles pregam acolá dentro (da Sé). Falam com verdade. É por isso que meu pai dizia: quando morreres, deixa ordens para levares só uma bandeira no caixão, a do Marítimo.
Pelas principais ruas, os turistas continuavam com as suas digitais a registar as belezas citadinas, abrigados com guarda-chuva e impermeáveis.
Da minha parte, desapareci discretamente, para não ser conotado com a doutrina comunista que o empregado tirou o dia para expandir. Tenho família a quem garantir subsistência.
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Turistas de impermeável fascinados com a capital. |
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Uma das guias em actividade, junto da estátua de Zarco e do Banco de Portugal (com o cofre falido). |
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