A responsabilidade criminal dos
pareceres
Estimado leitor,
nesta pequena sequência de publicações vai ser analisada a responsabilidade dos
pareceres emitidos por funcionários públicos.
Começarei pelos
serviços do Provedor de Justiça.
Miguel Silva
solicitou ao Provedor de Justiça que interviesse num concurso público: pretendia
que o Provedor de Justiça aconselhasse a Vice-Presidência do Governo Regional a
anular um concurso público para seleção de um cargo de dirigente de direção
intermédia. Um dos argumentos para a anulação era que o candidato selecionado
não cumpria com o “perfil exigido”. Reiterou várias vezes esse argumento,
chegando ao ponto de mencionar a lei[i].
À data dos
factos Helena Vera Cruz Pinto, atual Procuradora da República Coordenadora na
Comarca de Almada, exercia funções nos serviços do Provedor de Justiça, e
interveio neste processo.
A referida
Magistrada, no exercício de suas funções, por escrito, declarou que o “perfil
exigido” afinal é “perfil preferencial”, pelo que não solicitou à
Vice-Presidência do Governo Regional a anulação desse concurso e consequente anulação
da nomeação.
Miguel Silva
apresentou queixa-crime[ii]
contra a referida senhora por abuso de poder[iii]
e falsificação[iv].
A
Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa[v]
emitiu um despacho de arquivamento:
“A denunciada
limitou-se a proferir um despacho, em obediência estrita à lei e à
constituição, após ter feito as diligências que se impunham, junto da entidade
visada, a competente para fornecer os esclarecimentos necessários para a
prolação do despacho de proferido a fls 6 a 8, aqui dado por reproduzido.(…)”
Isto significa
que “é obediência estrita à lei e à constituição” um funcionário público emitir
um parecer contrário ao disposto numa lei, mesmo quando informado dessa
incongruência por escrito;
Implicitamente,
numa parte deste despacho não transcrita,
depreende-se que é crime não cumprir com os “deveres de conduta” em
funções públicas.
Miguel Silva solicitou
intervenção hierárquica:
1) reiterou que
a lei estabelece que os candidatos que não cumprem com o perfil exigido devem
ser excluídos do concurso;
2) alegou que a
denunciada não cumpriu com os deveres dos serviços do Provedor de Justiça,
nomeadamente o ponto 1 do artigo 1º da lei 9/91 (Estatuto do Provedor de
Justiça)[vi]:
assegurar Justiça e a legalidade das decisões da Administração Pública em benefício
dos cidadãos.
A decisão da
intervenção hierárquica foi tomada pela Exma Sra Procuradora Geral Distrital de
Lisboa, Maria José Morgado. Transcrevendo, resumo a sua decisão:
“A questão
nuclear diz respeito, à decisão de
arquivamento do processo de arquivamento administrativo aberto na Provedoria de
Justiça, e o entendimento da senhora Provedora-Adjunta de que os factos não
eram produto de violação das normas legais, nada havendo sugerir ou comunicar
às entidades governamentais. (…)
Para além disso,
não se preenchem no caso concreto os requisitos específicos do crime de abuso
de poder, tendo em conta a natureza das decisões da Provedora-Adjunta e do
órgão que representava. A Provedoria de Justiça é um órgão de mediação entre os
cidadãos e as instituições governamentais, destinada a receber e a examinar
queixas e fazer recomendações, tal como resulta do disposto no art. 23º da CRP[vii].
No
desenvolvimento da sua atividade de mediação, a Provedoria de Justiça tem a
faculdade de emitir pareceres, mas não tem qualquer poder decisório. Assim
sendo, ainda que por hipótese meramente académica, não poderia estar em causa a
prática do crime de abuso de poder por falta de preenchimento das qualidades
específicas da denunciada. De acordo com a previsão do artigo 282º do CP[viii],
o crime é cometido por funcionário com poderes de decisão[ix],
sendo por isso um crime específico próprio”.
Sobre o crime de
falsificação nada foi alegado nesse despacho.
O meu entender
da posição do MP é o seguinte:
1-
Um
funcionário público, ao emitir um parecer, pode estar a cumprir com o
“princípio da legalidade”, embora o conteúdo desse parecer contrarie o expressamente
estabelecido por lei;
2-
Se os
funcionários dos serviços do Provedor de Justiça tomarem posições contrárias à
lei vigente, não estão a cometer nenhum crime pois as suas decisões de
aconselhar ou não aconselhar, não são decisões… pelo que concluo que estes
funcionários não têm o dever de cumprir com o princípio da legalidade, embora
tenham o dever de assegurar “a justiça e
a legalidade do exercício dos poderes públicos”.
3-
Na versão do
Código Penal que está no sitio eletrónico da Procuradoria-Geral Distrital de
Lisboa[x]
, em abuso de poder, não está lá escrito: “O
funcionário com poderes de decisão” ou que está lá escrito é “O funcionário que (…) abusar de poderes ou
violar deveres inerentes às suas funções”. Conclui-se que na interpretação
das leis portuguesas, não é o que expressamente escrito na lei que conta…
4-
Penso que o
ponto 2 é aplicável a quase todos os funcionários públicos que emitem pareceres
pois, regra geral, quem ratifica ou homologa a decisão são os detentores de
cargos políticos e os detentores de cargos de direção superior[xi].
Consequentemente, são estes últimos que podem cometer crimes de “abuso de
poder” ou “corrupção” ou “falsificação”…
Conclusão.
A mesma de
sempre: para mim, estas decisões não são próprias de um Estado de Direito.
Eu, O Santo
[i] 4º-A do Decreto Legislativo Regional 27/2006/M “Procedimento de selecção dos cargos de direcção
intermédia”, “Em sede de apreciação
de candidaturas o júri exclui do procedimento de selecção. Fundamentadamente,
os candidatos que evidenciem não cumprir com os requisitos e perfil exigidos.”.
[ii] Processo 6220/16.T9LSB
[iii] Artigo 382º do Código Penal Português:
“O funcionário que, fora dos casos previstos nos
artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas
funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo
ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou
com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal.”
[iv] Artigo 256º do Código Penal Português:
“1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de
obter para si ou para outra pessoa
benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro
crime: (…)
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes
facto juridicamente relevante; (…)
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. (…)
4 - Se os factos referidos nos n.os 1 e 3 forem praticados por funcionário, no
exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco
anos.”
[v] feito por “nome
ilegível”
[vi] Artigo 1.º Funções
1 - O Provedor de Justiça é, nos termos da
Constituição, um órgão do Estado eleito pela Assembleia da República, que tem
por função principal a defesa e promoção dos direitos, liberdades, garantias e
interesses legítimos dos cidadãos, assegurando, através de meios informais, a
justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos.
[vii] Artigo 23º da Constituição da República Portuguesa.
1. Os cidadãos podem apresentar queixas por
acções ou omissões dos poderes públicos ao Provedor de Justiça, que as
apreciará sem poder decisório, dirigindo aos órgãos competentes as
recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças. (…)
[viii] Código Penal
[ix] não vejo a menção na lei a “funcionário com poderes de decisão”. O que eu
li foi “funcionário”. Vide iii.
[x] http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_estrutura.php?tabela=leis&artigo_id=&nid=109&nversao=&tabela=leis&so_miolo=
[xi] Exemplo. O licenciamento de obras. De acordo com o artigo 5º da Lei 555/99,
o licenciamento de obras de urbanização é da “competência da câmara municipal, podendo ser delegada no seu
presidente, com faculdade de subdelegação nos vereadores.” A questão que se
põe é que muitas vezes, existem alguns pareceres de entidades externas, como
por exemplo, do Governo Regional. Se houver um qualquer crime no processo, de
acordo como o parecer do MP, o crime é do individuo(s) que assinam a decisão
final.
Um concurso público.
A decisão é proposta pelo júri e homologada regra geral na Região por um
detentor de um cargo politico. Então se houver algum crime num concurso, o
crime é cometido pelo politico, ficando os membros do júri impunes.
3 comentários:
Nenhum tribunal deste país lhe dá razão. Conclusão, não vivemos num estado de direito... Se calhar é porque não tem razão e apenas gosta de desconversar! Mas não, o Estado é que não é de direito...
Sempre quero ver quem é o proximo desgraçado a não fazer o que o Miguel Silva acha que deve fazer e a ir perder tempo a um tribunal por causa dos choradinhos do Miguel Silva. Kafka estaria orgulhoso!
Diziam os cábulas de Coimbra: "Ligere e non inteligere esse burrigere". Se o "Santo" não entende o que lhe dizem, que fazer...?
E desde quando é que um eventual erro na análise jurídica é crime?
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