ARTIGO DE NÃO-OPINIÃO
SOBRE UMA NÃO-ENTREVISTA
O ressurgimento político de Bernardo Trindade soube por momentos a dádiva do céu, para desalaranjar um bocado o noticiário da terra, literalmente asfixiado pela guerra de Delfins. Cheirou a prenda do céu apenas por momentos porque logo se viu que a entrevista era uma não-entrevista, sem saber a pouco, sem saber a nada.
A Madeira atascou-se num impasse político-partidário que atinge necessariamente a comunicação social. A oposição não faz oposição porque o governo não governa. O governo não governa porque ninguém lhe faz oposição. Tudo isso mais as férias do exótico Parlamento levam a que não aconteça nada e, pior, a que não se entreveja qualquer coisa que esteja por acontecer. Tirando os Delfins...
Consequências na imprensa: recurso à não-notícia. Fulano tal não se vai candidatar, esta semana não se atirou ninguém do Ribeiro Seco.
Foi pois com entusiasmo que vimos saltar a terreiro Bernardo Trindade. Aconteceu no programa do nosso Amigo Acácio Pestana 'Rádio Totobola', em que também participou Victor Freitas, líder do PS-Madeira. Tratava-se de debater argumentos entre as duas linhas que disputam o poder socialista nacional - António Costa (Bernardo) e António José Seguro (Victor). Regionalizando a questão, Bernardo Trindade afirmou diante dos microfones ser favorável a eleições primárias também na Região, a ver quem deve ser o candidato socialista ao GR em 2015.
Victor contrariou, já que foi eleito em congresso por militantes que sabiam da sua intenção de ser ele o candidato a presidente do governo.
Feita esta 'caminha', ficou jornalisticamente legitimada uma entrevista com Bernardo Trindade, no DN. Assim foi. Se o trabalho escrito especificamente sobre o Rádio Totobola mereceu, na edição seguinte ao programa, as duas orelhas no cabeçalho, pois a entrevista deste sábado sobre o mesmo assunto levou mais de metade da primeira página com um plano americano de Bernardo, em traje ligeiro, a subir até lá acima ao logo do jornal.
De facto, que melhor assunto para nos aliviar de tanta guerra de Delfins senão uma outra guerra no PS?
Bernardo trazia um abanão com ele: "Primárias no PS-M e depois logo se vê", consoante a manchete citando o entrevistado.
Não tem notícia? Não terá, já que repetia uma intenção de Bernardo escrita antes. Mas aquele "depois logo se vê..."
Logo se vê, bem entendido: logo se vê se o homem é candidato no PS, em caso de haver as primárias que Victor já esclareceu não admitir.
Por este título, vamos ao objectivo, se percebe que Bernardo Trindade está disposto a continuar o 'mais do mesmo'. Ou seja, talvez avance como também é possível que se deixe ficar.
Só que agora - eis o interesse que julgávamos impregnar as duas páginas de conversa - Bernardo pretende agarrar a boleia de uma situação nacional para ver se finalmente concretiza um velho sonho. Uma estratégia que desde logo não vemos com futuro, a ser tratada desta forma. Os próprios militantes vêem que esta pseudo-investida não decorre de algum desastre eleitoral socialista que tenha ocorrido no passado domingo. Os resultados das europeias foram maus para o PS-M, mas... Bernardo acordou agora? E, francamente, qual o problema desse resultado? Que consequências práticas tem um resultado nas europeias onde as listas são nacionais? Esse resultado serve como barómetro, dá uma ideia da saúde do partido regional no momento, e mais nada.
Também não rebentou agora nenhuma bronca interna que justifique o recurso a umas primárias onde Bernardo - evidentemente que a ideia é essa - possa tentar ser o candidato a presidente do governo regional.
Se nada aconteceu de especial, porquê a ideia de abanar? Nem mais: é subir às nuvens à boleia de António Costa.
Então andam outros há anos numa guerra sem quartel, desigual, contra o totalitário poder laranja, para, num momento em que cheira a mudança no PS nacional, aparecer um salvador cujos únicos dotes políticos mostrados até ao momento se associam ao desempenho de um ridiculamente empolado cargo de secretário de Estado do Turismo? Sim, Bernardo também foi deputado na Assembleia Legislativa da Madeira. Mas não se deu por isso. Alguém se lembra? Sim, também foi deputado em São Bento. Mas aí é melhor saltar por cima, para não nos recordarmos de que, nessas eleições nacionais em que ele foi candidato, a força do PS-M em Lisboa baixou de 3 deputados para um só.
Bernardo teve ocasião de se chegar à frente, como diz o povo, por várias vezes. Ainda há meia dúzia de meses houve congresso, associado a eleições internas. Que melhor ocasião para mostrar um projecto e testar o seu impacto no partido?
Inevitavelmente, temos de evocar aqui a carreira política, demasiado curta, de António Trindade. Bastante o criticámos, na sua altura, por ele abdicar da luta política em favor da vida empresarial. Víamos nele um grande contributo para a vida pública madeirense, um perfil humano distinto, um estratego desesperadamente necessário na luta democrática para travar um jardinismo que à época secava os últimos rebentos da floresta plantada em Abril. António Trindade, que poucos anos antes ia correndo os social-democratas da Câmara do Funchal, fez outra opção de vida. Com todo o direito, mas infelizmente para a Madeira. Só que, desde então, o PS-M passou por momentos bons e momentos maus e não se viu aquele antigo dirigente dos tempos da Rua do Surdo vir tentar aproveitar os ares favoráveis para chegar acima.
Nesta fase política, de provável arranque para uma nova onda socialista com António Costa na crista, e em que o PPD-Madeira se esfrangalha internamente a cada dia que passa - eis Bernardo a pôr-se em bicos-de-pés para insinuar a sua existência de socialista.
Bom: que Victor Freitas e Carlos Pereira se entendam a ver qual deles deve ser candidato a presidente do governo, nada mais natural. Podem até concertar posições, porque a nosso ver são complementares. Cada qual tem as suas características políticas, cada qual tem as suas competências - bem distintas de um para outro, o que enriquece o campo das alternativas. Carlos Pereira é inegavelmente o deputado mais interveniente de todas as bancadas parlamentares, com um capital de projectos que um dia serão reactivados, auguramos. Mas, além de tudo isto, tanto Carlos Pereira como Victor Freitas têm enfrentado a política troglodita laranja. Ali, olhos nos olhos. Braço a braço. Claro que não estamos a considerar, nesta abordagem, as práticas políticas correntes da direcção socialista. Isso é outra matéria.
Pelo que vimos dizendo é que nos resignamos a levar este domingo ao Leitor uma não-opinião. Porque... o drama mais chocante é que Bernardo Trindade, na pseudo-entrevista, faz que aborda mas afinal não aborda nada as insinuações da capa da entrevista. Ele fala sem falar. É uma entrevista não-entrevista.
Respostas com as reservas de sempre, apesar de Sandra Cardoso não ter sido severa nas perguntas colocadas. Respostas que entendemos como tal graças ao negrito/claro e à disposição gráfica, não pelos conteúdos.
Eu vou, mas 'se'. E mesmo indo 'se', primeiro vou ver 'se'.
Faz lembrar chefe Jardim quando queria concorrer a líder nacional do PSD com a condição de não haver nenhum outro candidato no terreno. Hilariante.
Tudo numa base do 'se' que reduziu duas páginas do DN a uma entendiante não-entrevista, que tivemos de ler até ao fim para confirmarmos se dali não saía mesmo nada.
A jornalista pergunta se Victor Freitas é um bom candidato a presidente do governo. O entrevistado "escusa-se a responder". Apenas mais umas palavras gagas para concluir: "Qual o receio?" [das primárias]. Não é coisa com coisa.
E estará Bernardo disposto a "entrar na corrida" dentro do PS-M? Aqui ele "é cauteloso", escreve a jornalista. Ele diz que só responde a essa questão "se e quando ela se colocar".
Raios, e quando é isso?
Coligações? "Não nos podemos coligar com todos." Estamos esclarecidos.
Seguem-se umas banalidades sobre a situação interna do PS nacional. De dormir a sono solto. Bernardo diz a dado passo que procura na vida ser coerente. Pois a não-entrevista é coerente do princípio ao fim: um vazio pegado em duas páginas!
E volta-se à vaca fria regional. Com estas estrondosas originalidades:
- a Madeira viverá em 2015 "um momento político sem precedentes"
- depois de 30 anos de poder PSD, "o desafio é enorme para quem lhe suceder"
- o debate tem de ser dentro e fora do PS em busca de uma solução séria de governo para a Madeira
- mais do que falar em nomes, o PS deve é estar preparado para... blá blá
- sobre contestação... a questão não deve ser colocada sob a forma de contestação...
- tudo na vida é um processo e o PS tem que estar disponível para continuá-lo
Tragédia barra terror, como o Leitor vê.
Bernardo foge a dizer se Victor Freitas é ou não um bom candidato a presidente do governo?, pergunta a entrevistadora.
Não senhor, o entrevistado garante que não foge a nada. Após o que foge a 7 pés.
A jornalista pergunta ainda se o fenómeno António Costa se propagará à Madeira, com um Luís Amado ou mesmo o próprio Bernardo. Resposta: "A questão e o momento como percebeu são muito sérios."
Estamos percebidos. Mas há mais.
Por aí abaixo, é Bernardo a fazer as perguntas. Sim senhor. Ele pergunta que modelo de governação deve ter a Madeira. Que tipo de entendimentos o PS deve privilegiar. E com quem esses entendimentos. Que relação deve ser construída com o governo da República. Como devolver a esperança a madeirenses e porto-santenses.
Podemos estar a ver mal a coisa. Mas não era isso que gostaríamos de saber da boca de Bernardo, já que nos quer governar? A gente é que tem de lhe dizer como é?
- Oh Bernardo! - parece que estamos a ouvir Sandra Cardoso gritar - Num cenário de primárias, você avança ou não, porra?!
E lá vem nova não-resposta: "Mais uma vez, não queimemos etapas. Na altura própria, se a questão se vier a colocar, responderei à pergunta."
Ora, não percebemos de que estão à espera para resolver o caso, já que as primárias nacionais do PS são a 28 de Setembro - por acaso aniversário da 'maioria silenciosa'.
Bernardo nada disse, mais uma vez. Mas fica registada aquela do 'não queimar etapas'. Essa, sim, profunda.
Poupamos o leitor ao resto das duas páginas. Porque a não-entrevista continua com Bernardo a dizer ideias com quase 40 anos, como por exemplo fazer os madeirenses reconhecerem no PS uma alternativa. Ele então declara que esse é o trabalho a fazer. Mas não indica de que forma. Com tanto espaço que tinha para encher no DN!
Como? O Leitor, já agora, exige conhecer o resto da entrevista? Caro Amigo, pegue na edição de ontem do Diário. Não vou estar aqui a perder este sol do domingo para explicar o que diz Bernardo Trindade sobre a corrida interna no PPD, a "confusão na Câmara do Funchal", "o carácter abrangente da actividade turística", a importância de o País ter o seu PENT, sem esquecer o trabalho meritório do actual SET e "as dificuldades de ser filho de António Trindade".
A moral da história é esta: com as hesitações que vemos de cima a baixo, só falta Bernardo anunciar que, se houver primárias, apresenta candidatura... na condição de lhe garantirem sob palavra de honra que ele vai ganhar.
Perante esta não-entrevista, não pudemos ir além de uma não-opinião, este domingo.
Mas deixamos uma palavra ao Dr. Bernardo Trindade. Sol na eira e chuva no nabal só nos contos. Para liderar um partido não chega uma gravata de marca e um casaco de quadro. É preciso andar também cá por baixo, e muito tempo. Com pachorra e muito estômago. O Dr. Bernardo precisa de libertar o seu nervo político e as potencialidades de liderança. Tem muito tempo pela frente para o fazer.
Enfim, da forma como jaz o PS, não há volta a dar na informação do dia-a-dia: Delfins para baixo.