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sábado, 6 de fevereiro de 2021

CRÓNICA


JUVENAL XAVIER                                                                                  



FUTEBOL, UMA RELIGIÃO

 

À cabeceira (pela linha de cabeceira do relvado, onde corre, dorida, a bola irreverente e feiticeira) faço de conta que não li André Malraux, escritor francês, autor de A Condição Humana. Mas persegue-me o eco das palavras e dos silêncios. “A nossa civilização vive no sensacional, tal como a civilização grega viveu na mitologia.” 

Há futebol nessa vastidão do Universo que se expande a uma enorme velocidade pelo infinito.  

Cada estrela é uma bola de hidrogénio a milhões de anos-luz da Terra; quando explode, torna-se numa supernova. A estrela é cadente; o futebol, candente. Há um mundo que se volatiliza e outro que se põe em brasa. 

Nike (irmã de Rivalidade, Força e Poder) é a deusa grega da Vitória, filha do titã Pallas e de Styx.  

A Taça do Campeonato do Mundo de Futebol (A Deusa das Asas de Ouro) – uma estatueta de 30 cm e de 3.850 kg. de ouro maciço, símbolo de grandeza – representa a deusa Vitória. 

António da Silva Costa, no seu livro À Volta do Estádio, associa o futebol à religiosidade. E diz porquê: “Pela sua ligação aos mitos, pela sua estrutura fortemente enraizada na arqueologia humana e pelo seu funcionamento claramente ritual, o futebol deixa pressentir, no seu universo, uma alta religiosidade.” Costa (investigador em Sociologia e Antropologia do Desporto), que defendeu a tese Football et Mythe – La fonction symbolique du football à travers la presse sportive de masse, na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), sustenta que “a imprensa desportiva fala muitas vezes do futebol como se tratasse duma religião popular funcionando na sociedade moderna à maneira das grandes religiões com vocação universal.” 

Por sua vez, Desmond Morris entende que o futebol “tem sido descrito como uma pseudo-religião e existe um conflito de opinião semelhante na própria Igreja, entre padres que favorecem o ritual clássico e os modernistas que desejam atualizar as práticas religiosas e estão mais sintonizadas com as atitudes e os estilos de vida do século XX. Se o seu mundo pode servir de guia e se entre os dois se pode estabelecer um paralelo, então – conclui o autor de A Tribo do Futebol – o êxito imenso da pompa e do cerimonial que continua a rodear o papa parece favorecer os tradicionalistas do futebol.” 

Vítor Serpa, ao analisar O Século XX do Desporto, defendeu que “haverá uma estranha religiosidade nessa forma pagã de ocupar os tempos livres, um luxo classista só mais tarde liberalizado e que leva à organização e regulação do jogo, do desafio físico, quando não mesmo da exibição competitiva do corpo, em que assenta a ideia desportiva.” 

Manuel Sérgio aconselha “que se desmitifique os mitos e os deuses do desporto porque não passam de seres humanos que choram, cantam, gritam, amam.” O pai da Motricidade Humana argumenta: “Hoje, porque o sagrado parece (infelizmente) uma extravagância de épocas ultrapassadas, os atletas mais incensados são ícones de um tempo em que a eficácia, o rendimento e a competição predominam.” 

Retomando o pensamento de António da Silva Costa (o primeiro Professor Catedrático da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto), observamos que “a imprensa desportiva, através dum processo de heroicização bem presente na sua linguagem, transforma rapidamente os grandes atletas em artistas maravilhosos, verdadeiros seres híbridos que, embora saídos da raça humana, são celebrados ora como deuses ou super-homens, ora como heróis lendários vindos de outro mundo, e até como animais simbólicos e totémicos. Os heróis do desporto funcionam, no imaginário popular e com a colaboração da imprensa desportiva, como representantes do seu povo e como modelos de imitação para os seus admiradores. Estes heróis correm mesmo, muitas vezes, o risco de quererem ultrapassar os limites da sua condição humana e de repetirem certas situações dramáticas de que já nos falam os mitos. Basta pensar no drama do primeiro homem cuja condenação à morte e saída do paraíso são narradas pelo texto mítico do livro do Génesis.” 

No futebol, mito é Maradona – El Diego, Pelusa, El Diez, El Gordito, El Pibe. “Da rua ao céu, da glória à droga, foi deus...”, escreveu Rogério Azevedo, em A Bola, pois trata-se de um “fenómeno desportivo e social, talvez um dos poucos exemplares vivos onde podem estudar-se, ao pormenor, os efeitos que a sociedade pode provocar num homem.” 

Para Raymond Aron (sociólogo francês que cunhou a expressão Guerra Fria), “o mito continua a ser, como n’O Manifesto Comunista, o do aprendiz de feiticeiro.”  

Por fim, “o mito”, que começa o poema Ulisses, na Mensagem de Fernando Pessoa, coloca-nos na encruzilhada que “é o nada que é tudo.” 

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