Powered By Blogger

terça-feira, 19 de outubro de 2021

 

IASAUDE


Carta aberta ao Presidente da Assembleia Legislativa

da Região Autónoma da Madeira

 

Durante cerca de 30 anos os utentes do SRS Madeira-Serviço Regional de Saúde da Madeira beneficiaram da comparticipação ou reembolso de despesas de saúde com consultas médicas, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros atos médicos legalmente previstos.

A Convenção estabelecida entre a Secretaria Regional dos Assuntos Sociais e o Conselho Médico da Região Autónoma da Madeira da Ordem dos Médicos, em 29 de Janeiro de 2004, refere como um dos seus princípios fundamentais: “Ao utente, será assegurada, no contexto de complementaridade dos Serviços Públicos, a livre escolha do médico assistente, assim como do médico que realizará os exames complementares de diagnóstico e terapêutica que forem necessários”.

Com este príncipio, a Convenção assegurava o direito de escolha do utente dos serviços de saúde estabelecido na lei dos direitos e deveres do utente dos serviços de saúde, a qual  estabelece: “O utente dos serviços de saúde tem direito de escolha dos serviços e prestadores de cuidados de saúde, na medida dos recursos existentes”.

No entanto, 16 anos mais tarde, a Convenção nº 1/2020 estabelecida entre a Secretaria Regional da Saúde e Protecção Civil e o Conselho Médico da Região Autónoma da Madeira da Ordem dos Médicos, em 26 de Outubro de 2020, altera os direitos do utente dos serviços de saúde, em especial o direito de escolha, ao estabelecer o conceito de beneficiário: “São beneficiários da presente Convenção e, consequentemente, beneficiários de comparticipação ou reembolso de despesas de saúde com consultas médicas, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros atos médicos legalmente previstos, os utentes do SRS - Madeira que recorram, no âmbito da medicina privada, à consulta, prescrição ou prestação de atos médicos realizados pelos médicos aderentes à presente Convenção”.

Assim, com esta Convenção, deixam de ter direito a comparticipação ou reembolso de despesas de saúde com consultas médicas, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros atos médicos legalmente previstos, todos os utentes que, no exercício do seu direito de escolha,  decidam recorrer a médicos da Região Autonoma da Medira não aderentes à Convenção nº 1/2020.

Do mesmo modo, como o governo regional não estabeleceu convenções com as Secções Regionais do Norte, do Centro e do Sul da Ordem dos Médicos, os utentes que recorram a médicos do Continente e dos Açores deixam, também, de ter direito a comparticipação ou reembolso de despesas de saúde com consultas médicas, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros atos médicos legalmente previstos.

No entanto, esta alteração é ilegal, pois a matéria dos direitos dos utentes dos serviços de saúde, é da competência da Assembleia da Républica através da aprovação de Leis. Como tal, a Convenção nº 1/2020, apenas pode versar sobre matérias relativas ao relacionamento entre o Governo Regional e a Ordem dos Médicos. Não pode, por falta de competência legal, tratar de direitos dos utentes dos serviços de saúde.

Contudo, além da ilegalidade já referida, a Convenção nº 1/2020 padece de outros vícios e ilegalidades:

- A negociação com o Conselho Médico da Ordem dos Médicos da Madeira da Convenção nº 1/2020, a qual estabelece regras de comparticipação ou reembolso de despesas de saúde aos utentes, revela não só desconhecimento da legislação em vigor, como uma “subordinação” perigosa do governo regional, pois o Conselho Médico não tem qualquer competência legal nesta matéria;

- Limitar a comparticipação ou reembolso de despesas de saúde com consultas médicas, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros atos médicos legalmente previstos, apenas aos utentes que recorram a médicos aderentes à Convenção nº 1/2020, significa que o Conselho Médico da Ordem dos Médicos da Madeira soube defender os interesses dos médicos. Mas, significa, também, a demissão pelo governo regional da defesa dos interesses dos utentes do SRS – Sistema Regional de Saúde. Em vez de ser o guardião desses interesses, o governo regional opta por retirar direitos aos utentes que, no seu exercício do seu direito de escolha, optem por médicos que não aderiram à Convenção nº 1/2020;

- A Convenção nº 1/2020 foi negociada com a o Conselho Médico Ordem dos Médicos e publicada em pleno período pandémico, quando os utentes dos serviços de saúde estavam “confinados” no acesso aos serviços públicos de saúde, em resultado do combate à Covid, o que revela uma gritante insensibilidade social.

Estes vícios e ilegalidades espelham bem que os príncipios que nortearam a criação do SRS - Serviço Regional de Saúde, após 25 de Abril, deixaram de fazer sentido para o governo regional. Recorrendo à economia comportamental, podemos dizer que, na sua génese, foram as “normas sociais” que nortearam a ciação do Serviço Regional de Saúde. Por exemplo, o atribuição de um médico de família a cada utente, é um exemplo de que se pretendia estabelecer uma relação entre os utentes e os médicos baseada em normas sociais, de proximidade e familiaridade.

No entanto, com a Convenção nº 1/2020, a relação entre os utentes e os médicos passa a basear-se em “normas de mercado”. Como tal, o médico de família deixa de fazer sentido e deve ser extinto. Agora, o importante passa a ser proteger o mercado dos médicos da Madeira da concorrência dos médicos de outras regiões do país. Neste contexto, introduz-se o virus corruptor do “dinheiro” dos reembolsos na relação entre os utentes e os médicos para influenciar a escolha de um médico da Madeira.  

Contudo, esta prática tem o efeito pernicioso de “induzir artificialmente a procura de cuidados de saúde regionais”, uma prática que é púnível pela legislação em vigor. Deste modo, o governo regional dá uma machadada nas “normas sociais” e adopta “normas de mercado” que visam apenas proteger o mercado dos médicos da Madeira e retirar direitos aos utentes que vigoram há décadas.

Na verdade, o Serviço Regional de Saúde, que durante anos foi apresentado como o melhor do país, é hoje incapaz de negociar “preços socialmente justos” com os médicos. Por exemplo, uma consulta com um médicoo aderente à Convenção custa 55,00€, pagos na totalidade pelo utente, sendo reembolsado mais tarde de 8,25€, ou seja, custa 46,75€ ao utente.  Uma consulta de um utente com um médico com acordo com a ADSE custa 25,00€ mas o utente só paga 5,00€ sendo os restantes 20,00€ pagos mais tarde pela ADSE. No caso das seguradoras, uma consulta com um médico com acordo com a Multicare custa 30,00€, mas o utente só paga 15,00€ sendo os restantes 15,00€ pagos mais tarde pela Multicare. Se a ADSE, um organismo da administração pública, consegue negociar “preços socialmente justos” não se compreende que o governo regional não consiga negociar preços idênticos.

Por fim, a metáfora do subsídio de mobilidade para clarificar o exposto. Imagine que o governo central, no exercício das suas competências nesta matéria, decide celebrar com a TAP uma Convenção em que alteram as regras do subsídio de mobilidade. No futuro, só terão direito ao subsídio de mobilidade os residentes na Madeira que viajem pela TAP. Quem decidir viajar noutra companhia, mesmo que de cariz regional como a SATA, não terá direito a subsídio de mobilidade. Como é evidente, esta prática viola as regras de concorrência pelo que a TAP e o governo central nunca teriam a veleidade de celebrar tal convenção.

Senhor Presidente, esta carta é um apelo para que providencie no sentido de serem repostas as regras de reembolso válidas até 30 de Março de 2021, assim como providencie no sentido de promover um amplo debate sobre o futuro do SRS – Sistema Regional de Saúde, assente em normas sociais, do interesse doe todos os madeirenses, ou em normas de mercado, do interesse dos prestadores de saúde privados.

Um utente identificado

1 comentário:

Luis Figueira disse...

Muito bem escrito e por pessoa que está por dentro da materia