Debate orçamental traído
por ouvidos de
mercador
A dicção e as ideias orçamentais dos
secretários, os cacifos sem-abrigo, a polícia municipal e as férias cá dentro
Recebi muitas críticas ao longo da semana
pelo suposto desprezo do Fénix aos debates sobre o Orçamento da Região para
2017. Foram reparos justos, mas acho ser hora de me justificar.
Não se tratou de vadiação, como alguns
censores insinuaram. Doença, isso sim. Senti agravarem-se os distúrbios de
ouvido que se manifestam há pouco mais de um ano, desde que comecei a ouvir os
membros deste governo tentarem explicar alguma coisa. Esta semana, então, por
mais que pusesse a cabeça inclinada e orelha arrebitada como se faz na terceira
idade, para pescar alguma coisa, não consegui entender se eles discutiam
o Orçamento da Região ou se tinham combinado um jogo de associação de palavras;
se estavam numa corrente fechada de terapia de grupo; se era uma catarse como
fazem as empresas sorrateiramente decididas a despedir pessoal; ou se tudo
aquilo que eu via na TV era um retiro espiritual.
Sei que um dos atributos exigíveis aos
titulares da pasta de Finanças é falar para dentro, gaguejando, se possível um
pouco fanhoso e respondendo alhos quando lhes perguntam bugalhos. Há variantes.
A mudez é uma delas. Tivemos Susano França que apenas por gestos respondia às
perguntas sobre o descalabro financeiro que o então desenvolvimentismo
prometia. Fazia-se uma pergunta e o então secretário regional estava afónico.
Só que os tempos modernos obrigam aqueles titulares a falar, nem que seja à
força, porque, sobretudo na Madeira, a desgovernação faz-se nos media. Teixeira
dos Santos trabalhava com manha. Falava muito para o ouvinte chegar ao fim
confundido, incapaz de sintetizar a vozearia do homem. Pelo contrário, com
Vítor Gaspar fez furor a técnica de adormecer a audiência. Mário Centeno põe a
plateia a rir. No nosso caso regional, se era preciso a máxima atenção para
perceber 20% do que Ventura Garcês dizia, com este Gasparzinho esqueçam.
Eu não gostaria de estar na pele dos funcionários
da Assembleia encarregados de passar aquelas discursatas
soletradas, indecifráveis e sem sentido para o Diário de Sessões.
Devem andar com a gravação atrás mais de cem vezes por frase completa.
Imaginemos estes meninos do desgoverno a falar num parlamento do pré-histórico
tempo em que o recurso para os diários de sessões era a taquigrafia!
Ouvindo apenas Gasparzinho, uma pessoa
pensa: não é defeito dos ouvidos, aquilo é estratagema de executivo de
Finanças. O pior é que com os outros acontece o mesmo. Tentamos seguir um
raciocínio. As palavras chegam já difusas à entrada do pavilhão auricular,
perdem sentido ao percorrerem o canal auditivo e soam chinês ao embaterem no
tímpano.
São eles que não sabem falar - dirão os
meus amigos para me animar. Obrigado, mas só pode ser defeito destas
ouvideiras. É que, nos meus ouvidos, aquilo são praticamente os secretários
todos. Não entendo uma!
É verdade que não tenho problemas para
perceber as teorias que Miguel Albuquerque desbobina lá em baixo. Como dizia o experimentado
Estêvão da Silva, pelo bulir dos beiços a gente sabe o que ele está dizendo.
Depois de tantos anos...
Rubina Leal também é um caso de hábito. A
secretária da Inclusão fala para que os especialistas em linguagem gestual
percebem. E a gente vai atrás.
O caso de Eduardo Jesus é diferente.
Percebo as palavras que ele diz. Saem explicadas e nítidas. Mas juntando a
frase, a gente não sabe se ele disse que o ferry e o cargueiro vêm ou se vão.
Humberto Vasconcelos também tem uma
característica curiosa: consigo percebê-lo perfeitamente quando fala de
improviso, aí parece um papagaio; quando resolve ler, como na apresentação do
orçamento do seu pelouro, nem com legendas. Tomara que em próximas
oportunidades o faça como sabe, com as necessárias cábulas, mas improvisando,
porque sempre é mais um dos poucos que entendemos.
Quanto aos restantes, francamente, estes
ouvidos não chegam lá. Mais uma vez, o defeito é aqui do telespectador. Tanto
assim é que, lendo os relatos na imprensa, os discursos deles aparecem quase na
íntegra. Foram entendidos. Ao passo que os da oposição, muitos dos quais
entendi, os jornais não os perceberam, porque não aparecem reproduzidos.
Não venham dizer que é cera nos ouvidos,
porque desde os velhos tempos do Dr. Sotero Gomes aqui não faltam cuidados
preventivos. Antes deste governo, eu ouvia tudo e muito bem.
Cá para nós, aprovarem o Orçamento ou não,
cortarem aqui ou acrescentarem acolá, vai tudo dar no mesmo, pelo que não se
perde nada em passar adiante. O disco será o mesmo em 2017.
Mas eu não ficava bem se não explicasse o
"desprezo" de que me acusaram.
Preocupado com a doença dos ouvidos,
voltei a sublimação para vertentes mais agradáveis desta Pérola do Atlântico.
Não posso deixar de mencionar o acto do samaritano Paulo Cafôfo, que, segundo
anúncio de primeira página, vai instalar 12 cacifos ao ar livre para
disponibilizar à população sem-abrigo. Sim, que isto não pode ser só dizer mal,
meus senhores. Finalmente, alguém se lembra dos desgraçados que erram noite e
dia pela cidade sem um sítio seguro onde guardar os sacos de plástico das
beatas e muda de roupa e a meia garrafa de Ganita que ficou para a madrugada
seguinte. Esses vagabundos agora pelo menos terão um lugarzinho onde manter a
salvo o telemóvel, a carteira do dinheiro e a chave do carro, porque a cidade,
sendo pacífica, oferece também alguns perigos sobretudo de noite. Será até
psicologicamente mais reconfortante um sem-abrigo estender-se sobre o cartão na
'pensão estrela', com um olho no sono e outro no cacifo, a vigiar. Até para o
próprio Cafôfo é um respirar fundo: pode fazer as suas excursões por esse
mundo, com técnicos e secretárias, muito descansado, sem estar preocupado com a
tralha dos sem-abrigo. O mesmo para Miguel Albuquerque: o chefe do
Establishment precisa de concentração durante as caçadas em África, porque
falhar o tiro num leão por causa da lembrança de uma tristeza na Tabanca não
deve ser lá muito agradável.
Vem a talho de foice outra grande notícia
desta semana: que os madeirenses, julgamos que fartos de passar férias em
destinos exóticos género Havai ou género Tailândia, estão mais resolvidos a
fazer férias cá dentro. Ora aí está uma saída também para os sem-abrigo do
Funchal, até agora impedidos de ir de férias por falta de um cacifo onde deixar
a sua bagagem segura. Pois agora é trancar os haveres todos e ir por essa
Madeira dentro, naqueles safaris em jipes pintados de zebra, ou, por que não,
participar num eco-trail e experimentar a vertigem do canoeing. O sedentarismo
nas escadas do Anadia e nas costas do Mercado precisa de ser combatido.
Cuidadinho com a saúde de cada um.
Se o turismo, como se lê hoje, bate o
recorde em apenas 10 meses de 2016, com os madeirenses (sem-abrigo incluídos) a
fazer turismo cá dentro, em vez de Brasil e Vietname, não há Guiness que
resista!
Depois do alarme à conta da catarse no
Parlamento, esqueçamos os transtornos de audição e entremos já no prometido
"Natal descansado", com tolerâncias de ponto a dar com um pau.
Ainda sobre os cacifos: andam a tentar
obter internacionalmente títulos de património mundial para a lapinha, missas
do parto, tabaibo. Isto não dá nenhuma ideia?
PS - De propósito não referi a estratégia
cafofiana de provocar a indisciplina nas esplanadas para depois arranjar
polícia que a combata. A isto chama-se fazer mexer a economia. Não o referi
para evitar as habituais acusações das Angústias sobre um favorecimento aos
Paços do Concelho que não existe. Como eles não têm tempo de ler isto até ao fim,
cá fica o registo.
2 comentários:
O Debate do OR valeu por este excelente artigo. Bem haja, Caro Calisto.
Meu Caro Calisto
Julgo haver uma gralha no texto. Tratou-se de um debate Ornamental - a época empurra esta "coisa" para a árvore de Natal - pois ele nada teve de Orçamental.
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