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quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 

CRÓNICA


JUVENAL XAVIER                                                                                  






REGRESSO A TORGA

 

Não tenho conta dos muitos anos que levei para regressar a Torga e aos Novos Contos da Montanha. E nada me diz porquê. Se me chamo Adolfo Correia da Rocha por que razão, Miguel Torga? Curiosidade, sim, pela escolha de um pseudónimo que só apareceu, em 1934, em A Terceira Voz, depois da estreia em prosa com Pão Ázimo, três anos antes. Estreia porque se envolveu primeiro com a poesia, em 1928, com Ansiedade, ao entrar na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, depois de oito anos em Minas Gerais.

“É na letra redonda” – desabafava Torga – “que têm descanso as minhas angústias.”

“Este livro” – registou no prefácio à quinta edição, no Natal de 1966, em S. Martinho de Anta - é “mais feliz do que o seu irmão gémeo, Contos da Montanha, desterrado no Brasil”.

Quando finava, irremediavelmente, a vida de dor e sofrimento, sem mais portas aonde bater, chamava-se pelo Alma-Grande – o pai da morte. “A tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo.” Sem saberem, por certo, que era o recurso encoberto à eutanásia, mas a ânsia de pôr fim a um corpo há muito sem cura, ficavam-se perdidos a olhar para aquele fim de vida, “com terror e gratidão”, e “a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento.”

Noutro conto, guardas e contrabandistas “se juntam na venda do Inácio”, mas vigiam-se “na escuridão das horas” entre Fronteira e Fuentes e “quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei (…) o coração da aldeia estremece, mas não hesita.” Uns “por conta do Estado a vigiar o ribeiro”. Outros “por conta da Vida a passar o ribeiro.”

Na 5.ª edição de 1967, “com bastantes remendos na vestimenta já várias vezes remendada”, Miguel Torga cria uma montanha de contos como o do pastor Gabriel que merecia outras ovelhas ou O Leproso que “amofinado de angústia, estudava ao espelho, com minúcias de investigador, as subtis modificações da expressão, a transfiguração progressiva do rosto, mas o chamadoiro da sua desgraça era um mistério.”

- Quem foi, minha mãe?

- O Belmiro.

- O pai ou o filho?

- O pai.

Os que se iam eram tantos que o padre nem mandava tocar o sino na aldeia “com os pulmões tomados”. O bicho tivera nomes como peste negra, gripe espanhola, sarampo ou varíola. E, nos Novos Contos da Montanha, era a lepra e o imenso medo do seu contágio e para esconder quantos foram para debaixo da terra, levados pela desgraça, até “o sino mantinha-se calado com medo de acordar a morte.”

Hei de regressar, continuamente, aos “irmãos serranos que se purificam com sofrimento universal num purgatório de chamas transmontanas” e lembrar que, para aviar a receita para o seu pseudónimo, o médico otorrinolaringologista Adolfo Correia da Rocha (1907-1995) homenageou Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, e a Torga, uma planta, uma urze.

“O Diabo põe e Deus dispõe” é a sentença de Miguel Torga (Prémio Camões de 1989) que sente que “o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura.”

Sinto, pois, vontade de pôr e dispor entre mim e as montanhas que imagino a ocultarem as voltas do destino.

1 comentário:

Anónimo disse...

Belo artigo, mas no fundo é dar perolas a porcos.