CRÓNICA
JUVENAL XAVIER
REGRESSO A TORGA
Não tenho conta dos muitos anos que levei
para regressar a Torga e aos Novos Contos da Montanha. E nada me diz
porquê. Se me chamo Adolfo Correia da Rocha por que razão, Miguel Torga?
Curiosidade, sim, pela escolha de um pseudónimo que só apareceu, em 1934, em
A Terceira Voz, depois da estreia em prosa com Pão Ázimo, três anos antes.
Estreia porque se envolveu primeiro com a poesia, em 1928, com Ansiedade,
ao entrar na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, depois de
oito anos em Minas Gerais.
“É na letra redonda” – desabafava Torga – “que têm descanso as minhas angústias.”
“Este livro” – registou no prefácio à
quinta edição, no Natal de 1966, em S. Martinho de Anta - é “mais feliz do
que o seu irmão gémeo, Contos da Montanha, desterrado no Brasil”.
Quando finava, irremediavelmente, a vida
de dor e sofrimento, sem mais portas aonde bater, chamava-se pelo
Alma-Grande – o pai da morte. “A tenaz das suas mãos e o peso do seu
joelho passavam guia ao moribundo.” Sem saberem, por certo, que era o
recurso encoberto à eutanásia, mas a ânsia de pôr fim a um corpo há muito
sem cura, ficavam-se perdidos a olhar para aquele fim de vida, “com terror
e gratidão”, e “a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um
rio aceita o seu movimento.”
Noutro conto, guardas e contrabandistas
“se juntam na venda do Inácio”, mas vigiam-se “na escuridão das horas”
entre Fronteira e Fuentes e “quando algum não regressa, e por lá
fica varado pela bala de uma lei (…) o coração da aldeia estremece, mas
não hesita.” Uns “por conta do Estado a vigiar o ribeiro”. Outros “por
conta da Vida a passar o ribeiro.”
Na 5.ª edição de 1967, “com bastantes
remendos na vestimenta já várias vezes remendada”, Miguel Torga cria uma
montanha de contos como o do pastor Gabriel que merecia outras ovelhas ou
O Leproso que “amofinado de angústia, estudava ao espelho, com minúcias de
investigador, as subtis modificações da expressão, a transfiguração
progressiva do rosto, mas o chamadoiro da sua desgraça era um mistério.”
- Quem foi, minha mãe?
- O Belmiro.
- O pai ou o filho?
- O pai.
Os que se iam eram tantos que o padre nem
mandava tocar o sino na aldeia “com os pulmões tomados”. O bicho tivera
nomes como peste negra, gripe espanhola, sarampo ou varíola. E, nos Novos
Contos da Montanha, era a lepra e o imenso medo do seu contágio e para
esconder quantos foram para debaixo da terra, levados pela desgraça, até
“o sino mantinha-se calado com medo de acordar a morte.”
Hei de regressar, continuamente, aos
“irmãos serranos que se purificam com sofrimento universal num purgatório
de chamas transmontanas” e lembrar que, para aviar a receita para o
seu pseudónimo, o médico otorrinolaringologista Adolfo Correia da Rocha
(1907-1995) homenageou Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, e a Torga,
uma planta, uma urze.
“O Diabo põe e Deus dispõe” é a sentença
de Miguel Torga (Prémio Camões de 1989) que sente que “o coração dos
homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde
lhe entra a ternura.”
Sinto, pois, vontade de pôr e dispor entre mim e as montanhas que imagino a ocultarem as voltas do destino.
1 comentário:
Belo artigo, mas no fundo é dar perolas a porcos.
Enviar um comentário