O CANDIDATO
O candidato falava, sem grande entusiasmo, sob um céu cinzento, tendo atrás de si burocráticos guarda-chuvas pretos, solenemente abertos, e a Quinta Vigia na linha do horizonte. Falava enquadrado por obras que criaram um fosso na cidade, que cavaram a distância insuperável entre ele e aqueles que lhe abriram o caminho. Nenhuma ponte solidária foi estendida ao candidato, que cirandava entre fantasmas e combatentes de outro tempo, tendo por ruído de fundo o matraquear constante das máquinas que insistem em fazer do passado um presente constante, esventrando a terra, galgando o mar, recuando, avançando, recuando, avançando, recuando trac trac trac trac trac trac, o som velho e insano de um devir em betão.
Na apresentação do candidato, onde estavam os dias soalheiros da cidade? Os dias da manga curta, das conversas na esplanada, do mar plano e azul, do tempo que corre como quer, dos jacarandás em flor, das árvores do fogo, dos cheiros imensos, das corriolas que trepam os muros nas encostas que escalamos, dos navios que chegam e que partem, do cantinho do céu, da esquina do mundo? Onde estavam os dias verdes e azuis e pretos de basalto? A música do mercado, a gente que percorre a Fernão de Ornelas, os penitentes da Senhora do Monte, os crentes que avançam por São Tiago? Onde estavam as correrias da saída das escolas, as imagens dos casamentos e da benção das capas nas montras das lojas de fotografia? Onde estavam os táxis vindos de fora, varados no Largo da Varadouros, os fatos e as gravatas dos finais das tardes de sexta na placa central, os dias longos, os dias curtos com cheiro a castanhas, os autocarros amarelos plenos de cansaço e de esperança, que voam até às zonas altas, os táxis amarelos que esperam dias melhores, a cidade velha acordada e a cidade nova que dorme pouco? Onde estavam os parentes que chegam, os bolos de mel e os licores do Natal, os imensos sonhos da Páscoa?
Na apresentação do candidato, onde estava o Funchal? Atrás de negros guarda-chuvas burocráticos? Atrás das ideias tão velhas como a Sé? Encolhido sob um céu cinzento e chuva miudinha, com medo do vento, mal humorado?
Ninguém disse ao candidato que a cidade precisa de entusiasmo, de dias claros? Que a cidade quer recuperar as suas cores vivas e o seu tempo? Quer ser criativa e não encolher-se? Quer esperança e não resignação? Quer ser livre e não quer estar à sombra da Quinta Vigia que ontem, como mãe protectora, velava por ele, que falava olhando para ela? Ninguém disse ao candidato que o tempo mudou?
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