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quarta-feira, 25 de abril de 2012

Cultura, Culturas

ABRIL DAS ILUSÕES PERDIDAS





Escaldado pelo despertar abrupto em 16 de Março, obviamente mandei bugiar os arautos que chegaram com a novidade à messe de oficiais, não longe do CISMI, em Tavira: toda a gente para o quartel, há tropas nas ruas de Lisboa, o governo está a cair! - berrava um tenente chico.
O capitão de Infantaria com quem partilhava a enorme sala usada como dormitório e que me tratava por aspirante - bom dia, aspirante, estou mobilizado para a Guiné, aspirante, se quiser pode ficar com os meus livros, aspirante - o homem desaparecera sem que me tivesse apercebido. Ainda ouvi as vozes contrariadas dos aspirantes que dormiam noutros quartos, o Maia, o Soares, todos praguejavam novo atentado contra o direito ao sono. Um deles, de saída, ainda deitou a cabeça para os meus aposentos resmungando "está a levantar, embora à revolução, já chegámos à Madeira?!"
Quando a paz voltou à messe, reentrei no reino dos sonhos, depois de cinicamente lamentar a idiotice dos meus camaradas que mais uma vez caíam no 'golpe das Caldas' e, no espaço de pouco mais de um mês, sacrificavam pelo menos duas horas de cama quente à quimera do anti-fascismo.
Levantei-me de um salto e mais uma vez voei para o quartel, sem ideias de tomar sequer pequeno almoço. Era tarde e, se demorasse, adeus formatura das oito e quem sabe se não apanhava nova 'piçada' do bronco major Pires, que dias antes desistira, todo mal disposto, de uma revista ao meu pelotão, porque já reparara na 'trunfa' anti-ordem de 3 ou 4 instruendos. 


O quartel onde funcionava o CISMI, em Tavira.


Portão fechado. O quartel estava de prevenção. As companhias, tal como no 16 de Março, não se alinhavam para a formatura geral. Os pelotões espalhavam-se na parada, em poses anárquicas. Que oportunidade para cortar o cabelo - pensei comigo - enquanto não chega determinação superior para retomar a normalidade porque os novos rebeldes, sejam eles quem forem, entretanto devem render-se! Encontrei o instruendo Alabassa que vinha da cantina - ou foi outro, acho que o Alabassa foi do curso anterior - e pedi-lhe que transmitisse ao cabo miliciano Pinguinhas a ordem para aguentar o pelotão mais um quarto de hora, que eu já lá chegava.
Sentei-me no barbeiro, um civil, que avançou no seu trabalho ao som das marchas marciais saídas do velho rádio ligado em cima de uma prateleira. "Não percebo nada disto", dizia ele.
Eis senão quando a música baixa de volume e uma voz solene anuncia: "Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas. Conforme tem sido difundido, as Forças Armadas desencaderam na madrugada de hoje uma série de acções com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina... - eu já tinha obrigado o barbeiro a interromper o serviço e ele dizia-me que 'isto já deu há bocado'; a leitura continuava - Consciente de que interpreta os verdadeiros sentimentos da Nação, o Movimento das Forças Armadas prosseguirá na sua acção libertadora e pede à população..."
O cabelo ficou como estava e disparei-me pela parada em busca de aspirantes que me traduzissem o significado dos acontecimentos. A revolução podia voltar a falhar, mas aquilo já era dia bem adiantado e a tropa tinha uma telefonia para falar, quem sabe se...

Velório na sala de oficiais a 25 de Abril!

Em contraste com as conversas acaloradas nos grupos de instruendos com quem me cruzei, fui encontrar um ambiente de velório na sala de oficiais e senti-me idiota por causa do sorriso aberto que levava e se desvaneceu perante o silêncio do estranho ambiente. Fiquei no bar a ver o comandante sentado ao fundo da sala maior, com o major Pires e outros graúdos ao lado, a folhear jornais e revistas, como se nada de especial se passasse. Troquei olhares com aspirantes, alferes, tenentes e capitães, mas sem me atrever a perguntar que raio de papel era o da nossa unidade perante as notícias na rádio. 
Incrivelmente, a manhã decorreu assim: indefinição total no CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, apesar das informações evidentes de que o golpe em Lisboa triunfava sem oposição. Os comandos da unidade remetidos ao mais deslocado silêncio. "Mas nós vamos ficar...?", tentei motivar alguns camaradas, que se limitavam a encolher os ombros. Sem certezas, ninguém arrriscava o castigo de uma mobilização para o Ultramar em guerra.
Desci da sala e procurei o meu pelotão, ficando a saber que um ímpeto rebelde germinava entre os instruendos. Pinguinhas e os demais rapazes explicaram-me: um instruendo ouviu numa rádio espanhola que "o CISMI de Tavira não aderiu à revolução triunfante em todo o território continental português", e os ânimos exaltam-se.

Levantamento de rancho falhado 
O levantamento de rancho estava iminente, à hora de almoço. Vibrei com as diversas companhias de rapazes empenhados no espírito revolucionário que alastrara ao País. Ninguém pegaria nos talheres para comer! A expressão dos aspirantes comandantes de pelotão era um incentivo à luta. Ninguém comia e não comia mesmo!
O comandante do CISMI foi chamado ao refeitório. O longo discurso com apelos à obediência, seguidos de ameaças à luz da discilpina militar, nenhum efeito surtiu. Ninguém comia. O comandante, de voz trémula, embargada, fixou-se num instruendo, pobre rapaz de um interior qualquer, baixo e anafado, assustadísismo. O comandante dedicou-lhe a táctica para desmobilizar o levantameno de rancho. Uns gritos depois, o rapaz pegou na colher.
Ainda hoje penso que essa foi a primeira derrota do espírito revolucionário abrilista de 1974. Porque havia 5 companhias e diversos jovens oficiais a ouvir um comandante ameaçar um pobre instruendo quando a ditadura já caíra na capital e o povo festejava com beijos e cravos a conquista da liberdade. E a velha autoridade, já de rastos em Lisboa, triunfava ainda num quartel de Tavira. E nós em posição de sentido, sem mexer um músculo!
Gorada tal tentativa de obrigar os comandos da unidade a definir-se, a tensão cresceu dentro do quartel de portas fechadas em regime de prevenção. Veio a tarde, veio a noite. "O País festeja o derrube do fascismo e nós vamos continuar aqui às ordens de um comandante arrogante e reaccionário?" Ninguém dava ouvidos, na sala de oficiais. "O que é que se pode fazer? Prendê-lo?"
"Então? Vamos ficar aqui à espera que venham de Lisboa bombardear esta m... de quartel?"
O ambiente não podia pesar mais. "Que se passará na Madeira a esta hora?", pensei várias vezes a caminho da meia-noite, naquela sala cheia de oficiais mudos, que nem ao póquer de dados tinham ganas de jogar. O Pintassilgo, que fora do meu pelotão em Mafra, no COM, é que 'pagava as favas,' porque descarreguei nele os meus momentos de fúria. "Homem, vamos ver o que diz o Spínola, já não falta muito", sussurrava o Pintassilgo, para me fazer baixar a voz e evitar atrair a cólera do comandante. E eu: "O gajo que se...!"

Trapos do velho regime

Só à uma e meia da madrugada, já dia 26, apareceu no écran da TV o grupo de militares da novíssima Junta de Salvação Nacional, com Spínola à cabeça. O carismático oficial explicou a situação criada. Estava consumada finalmente a viragem política em Portugal.
Assim que o presidente da Junta se calou, o comandante levantou-se do sofá de onde seguira a transmissão, olhou em redor e declarou: "Senhores oficiais, nós, como unidade militar que aderiu ao golpe de estado em Portugal logo à primeira hora..."
Recusei-me a guardar na memória o resto da descarada prédica. O caduco regime caía como todos os do género salazarento: cobardemente.
Uma semana depois, no 1.º de Maio em liberdade, provocou-me um asco inultrapassável a expressão lamechas de certos militares com os dedos em 'V' nas janelas da sala de oficiais, vitoriados pelo democrático e laborioso povo de Tavira que absorvera palavras de ordem como 'o povo está com o MFA', 'o povo unido nunca mais será vencido', 'vivam as Forças Armadas'.

Meses depois, já colocado na BI 19, na Nazaré, Funchal, soube que o capitão Baptista da nossa 1.ª companhia em Tavira, filho do comandante, participara nos preparativos do 25 de Abril, nas secretas reuniões do MFA. Ouvi dizer também que o comandante fora saneado do Exército.
Quanto ao capitão com quem partilhava a sala de dormir, não tornei a vê-lo depois daquela madrugada. 
Desde então, já visitei algumas vezes a inesquecível cidade de Tavira e falei com velhos camaradas de armas, como o Pacheco, que se fixou por lá - e a quem agradeço os festins que sempre oferece no seu restaurante ao velho amigo madeirense. Estive lá, mas não me interessei sequer em confirmar histórias de Abril que me chegaram depois da tropa. Para mim, Abril continua a ser Tavira. É o Gilão, as festas na Corredora, a Ilha, o cinema, os meus amigos e as minhas amigas tavirenses, os meus velhos camaradas de tropa, o Júlio Ribeiro, o Basílio, o Soares, o Pacheco, o Pinguinhas. Abril é o CISMI, os bailes no Orfeão, a salada de polvo à beira rio, as baladas subversivas com imperial no Cristóvão. Abril é Tavira. Parafraseando Baptista Bastos, era em Tavira que eu estava no 25 de Abril. Abril é também o leque das ilusões de faculdade e tropa, hoje perdidas.
Abril é Tavira até porque vim aterrar na minha ilha onde persiste o sequestro político-social às garras de umas soezes excrescências do Estado Novo que, 38 anos depois, impedem  a Revolução de estender sequer o perfume dos cravos que simbolizam vagamente a democracia.

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