O nosso K-Kultura tenta uma incursão pelo mundo da Arte, vertente teatro. E não se sai nada mal. Foi só dar uma olhadela ao vespeiro da Rua dos Ferreiros e teclar.
Diálogos fundidos
- Olha lá: onde é que foste?
- Ia, mas não cheguei lá. Queria ir ao ABM, li no diário que era lá a biblioteca, mas ninguém me soube indicar o caminho, nem os taxistas sabiam. Por isso vou deixar para outro dia, talvez vá nos horários de Santo António.
- ABM? Mas o que é isso? É alguma nova marca de travões, é loja de carros?
- Cá nada, disseram que é onde está a Biblioteca Pública Regional, aquela grande, e eu queria ir lá levantar um livro.
- Ah, já percebi. Isso é na Penteada, é o edifício onde está a Biblioteca e o Arquivo. Podes lá ir na mesma, só que tens de dizer o nome antigo. ABM ninguém sabe o que é.
- Mas então como é que inventam um nome desses que o povo não percebe?
- Ora, é fácil: é que agora os organismos e nomes do governo, departamentos oficiais, institutos, etc., foi quase tudo fundido, incluindo boys and girls: eles misturam umas coisas com as outras e depois dizem que sai mais barato, tipo dois em um.
- Mas também fizeram isso na cultura?
- Pois na cultura é que foi! Não vês que até a sede da cultura fica na rua dos Ferreiros?
- Não percebo o que tem o rabo a ver com as calças…
- Então? O que é que faz o ferreiro? O ferreiro martela, aquece, martela, faz amálgama, funde, e aparentemente faz surgir coisas novas. Já visitaste uma oficina de ferreiro? Isso quase não existe hoje em dia, mas havia antes lá nessa rua, daí o nome. Mas agora a única fundição que resta é mesmo a da cultura.
- Ah sim? Isso parece bastante estranho. Fundir, fundição, cultura… mas como é isso?
- Então, vê se percebes: o trabalho destes tipos e tipas que mandam agora é pegar no ferro velho e nos antigos materiais, levar ao lume e à bigorna, martelar, amassar, aquecer, quebrar, aquecer e martelar de novo, e depois colocar na montra, ou seja, nos jornais, novos formatos de coisas antigas. É tudo a mesma coisa, mas fundido, de modo a parecer a invenção da roda. E sabes que aqui no burgo a vilhoada sempre se pelava pela novidade, já no tempo da velha senhora, mesmo que debaixo de novos panos a carne estivesse rançosa.
- Bem, já começo a perceber então as notícias que têm saído…
- Pois claro, então não vês? É por isso que as coisas demoram imenso a aparecer: eles têm que levar a matéria ao rubro, têm que martelar e inventar muito, novos desenhos, ferro velho e muita martelada, e sobretudo têm que fundir o juízo àquela gente toda, aos que mandavam antes e aos que vão mandar agora: é um trabalho de fundição que nunca mais acaba, e o pessoal que anda lá já está completamente fundido, muitos deles nem para cascos de cavalo servem, tão fundido que já têm o miolo!
- Olha lá, só me resta uma pequena dúvida. É uma questão de português, mas como eu não cheguei a ir à biblioteca… Diz-me uma coisa: como é que se escreve fundido: é com O ou com U?
- Claro que é com O: é com O, e um F grande, de lua de mel.
Nota do Fénix - Perante o estado de coisas, está claro que, naquela casa dos Ferreiros, espeto de pau. Ou, para sermos ainda mais claros, fundidos e mal pagos.