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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Histórias da bola quadrada





VITAL E AS LIÇÕES DA VIDA

O 'Tigre de Évora' morreu hoje, mas deixa-nos em memória vários episódios ligados à Madeira. Alguns bons, outros péssimos. Todos úteis.




O falecimento hoje do lendário guarda-redes português Dinis Vital trouxe-nos à memória algumas situações interessantes do passado futebolístico madeirense, umas más e outras boas. Mas todas a contribuir para sedimentar, difícil e paulatinamente, uma amizade que a morte não eliminará.
Vital veio à Madeira defender a baliza do Lusitano de Évora, da I Divisão Nacional, em 1959, ano memorável para ele - porquanto, apesar de alinhar num clube de província, foi chamado à Selecção A (contra a Suiça, em Genebra) deixando fora da linha os famosos guarda-redes dos clubes grandes. Já na selecção B e na militar era mais fácil chegar ao 'onze', como aconteceu com Vital, também.


Por essa altura de 1959 o n.º 1 da equipa do Lusitano em matéria de colecção de cromos, que guardámos durante muitos anos, era precisamente Vital. E foi com expectativa que no Funchal seguimos as peripécias da eliminatória em duas mãos da Taça de Portugal disputada entre Lusitano e Marítimo, nesse 1959. Os 'Campeões das Ilhas' atravessavam uma crise em resultados desportivos. Como se comprovou nessa disputa: o Lusitano venceu por 3-1 em Évora e veio aos Barreiros repetir a dose. Vital e companheiros da equipa alentejana verde-branca seguiram em frente na prova.
A decepção dos maritimistas não se ficaria por aí. Num jogo particular a meio da semana marcado para o Campo do Liceu, com o Nacional e o Lusitano frente a frente, esperava-se nos lados do Almirante Reis que os continentais aplicassem aos preto-brancos uma receita pior do que o 3-1 nos Barreiros. De contrário, já se sabe.
O Nacional não podia contar com o canariano Gilberto Gonzalez, o seu melhor elemento. Mokuna terminaria poucas horas antes do jogo uma estafante marcha militar desde o Porto Novo ao Funchal. Mas, dentro do campo, o jovem Eduardo 'Bolachinha' começou a brilhar cedo. Marcou no primeiro tempo e fez enervar Vital, que se revoltava com o árbitro Pereira de Oliveira, chamando-o cego com aquele gesto de mãos diante dos olhos.
O segundo tempo seria bem pior para os visitantes. Um após outro, golos e mais golos na baliza de Vital. Só à conta de 'Bolachinha' foram 3! Pelo caminho, o guarda-redes do Lusitano maltratou fisicamente o árbitro e também não deixou sem marcas um dos fiscais-de-linha. Expulso, a muito custo. Tarde incrível para Vital. 
Feito o 6-0, os atletas visitantes, por ordem do seu treinador, deixaram-se ficar estáticos no pelado do Liceu. Atitude passiva que levou o árbitro a dar o jogo por terminado 11 minutos antes dos 90.
O escândalo foi propalado ao país pela imprensa nacional. Quanto a Vital, a quem se vaticinava uma irradiação sem apelo nem agravo, foi punido com uma simpatiquíssima repreensão registada.
Talvez porque... Bom, o Lusitano acabava de ganhar a Taça de Correcção pela segunda vez, no Campeonato Nacional de Futebol da I Divisão.

Essa deslocação à Madeira serviu de lição a Vital: vencer no campo com recurso ao anti-desportivismo nunca dá certo. 
Foi o que nos confessou mais tarde, quando já não tínhamos idade para coleccionar cromos e nos mandavam defrontar cara a cara o 'Tigre de Évora', como era conhecido Dinis Vital mesmo depois de senhor da baliza do V. Setúbal.
Com muito optimismo, a equipa do Marítimo viajou no Verão de 1973 até Montemor-o-Novo, para defrontar o União local a contar para uma liguilla de apuramento rumo à II Divisão portuguesa. Era o Glorioso, enfim, a lançar-se para o futebol nacional, sonho de décadas.
Vital era treinador-jogador do Montemor e cumpriu a cortesia de visitar a comitiva do Marítimo, no hotel, na véspera do jogo. Deixou a mensagem: não apostem amanhã nos cruzamentos, porque são todos meus.
Claro que entendemos o seu receio: o velhote não quer problemas aéreos dentro de área.
Entendemos mal. O homem ganhou os lances todos pelo ar e pelo chão. E o Marítimo, surpresa das surpresas, já que ganhava a grandes e pequenos de Portugal nos amigáveis disputados nos Barreiros, perdeu por 1-0. 
A Liguilla continuou muito pouco famosa para nós. Mas, até ver, sem inviabilizar o apuramento. 
Chegou a vez de o Montemor vir saborear o que era bom nos Barreiros, para a segunda volta da prova. Ai tinham-nos humilhado no Alentejo? Ai o Vital tinha 'levado' 6 do Nacional em 1959, ferindo mais o orgulho do Marítimo? Pois soara o tempo da vingança.
Nas declarações à imprensa de véspera, fui atacado pela soberba. Para não dizer pela arrogância e pelo excesso de confiança. Pelo instinto de vingança. Sim senhor, mostraríamos em casa que o líder da prova, União de Montemor, era um bluff sem classificação nenhuma.
Estávamos sincera e absolutamente confiantes. Pelas minhas contas, o Montemor deveria ter pedido botas de relva emprestadas a algum clube amigo, para poder jogar nos Barreiros.

Vital acabou de ler o jornal com aquelas declarações, domingo de manhã, e correu para o estágio do Marítimo.
- Então tu é que és o Eusébio cá da zona? - cresceu ele agressivamente quando estávamos em grupo, de fato-treino verde-encarnado, no muro da Estrada Monumental, preenchendo tempo até ao almoço e ao jogo.
Por um triz não se chegou a vias de facto. Foi feio. Muito.
À tarde, no relvado...
Para abreviar, Vital voltou a defender tudo. Não me lembro se o Montemor passou do meio campo, mas lembro-me das 'manápulas' do veterano 'Tigre de Évora' subir aos céus dos Barreiros para neutralizar os cruzamentos, mas também a voar de poste a poste para evitar as tentativas desesperadas de Noémio, Ângelo e companhia.
Zero-Zero.
Vital 'picara' os seus homens e, de certo modo, desestabilizara o nosso ambiente.
A imprensa de segunda-feira trazia um recado, mais ou menos isto:
- Digam a esse sujeito que retiro o que disse depois do jogo de Montemor. Jogadores de futebol de salão como ele tenho lá aos montes, não o quero para nada.
O pior foi a situação em que, por força do ponto perdido em casa, ficou mergulhado o Marítimo em termos de liguilla. O acesso à II Divisão altamente comprometido.
Com o passar das épocas, tornámos a encontrar-nos. Uma aproximação inevitável. Ele falava do grande ataque do Marítimo dos tempos de Chino, Checa e Raul, que tão bem conhecera. Da lição que a sobranceria no Liceu lhe proporcionara para o resto da carreira. 
...Da rivalidade nasceu uma amizade como muitas das que se coleccionam no futebol e que perduram para toda a vida. E para além dela.
Obrigado pelas lições, Vital. Perdi uma dose de arrogância e duas doses de 'peneiras' naquela fase. O instinto de vingança perdeu um pouco de força. Aprendi contigo, dentro do campo. No arame farpado.
Até sempre, 'Tigre'.

Vitória de Setúbal nos tempos áureos da Europa: de pé, Vital, Leiria, Conceição, Herculano, Tomé e Carriço; em baixo, Guerreiro, José Maria, Pedras, Vítor Baptista e Jacinto João.

1 comentário:

Anónimo disse...

Já tenho saudades de ver fotografias dos jantares "de apoio" ao Miguel de Sousa....