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sexta-feira, 9 de março de 2012

Delícias do Bar


"A GINJA" DAS ROLETAS FECHOU HÁ 9 ANOS

Pela castiça"Ginja" passaram gerações de operários, estudantes, advogados, engenheiros.
Ao tempo que desapareceu da Rua da Queimada de Baixo o ruído característico da mais famosa sala de jogos do Funchal nos anos 50 e 60! Acanhada, sim, mas só fazendo bicha para conseguir ocupar uma das mesas de bilhar ou de matraquilhos, bem tratadas e em número reduzido. Durante o dia e parte da noite, fregueses de todas as categorias sociais, estudantes e trabalhadores, expediam da "Ginja" uma vozearia mais ou menos acalorada conforme as peripécias dos jogos em curso, martelada insistentemente pelas pancadas estridentes dos bonecos a despachar a bola de osso e do contacto infernal desta com o fundo metálico da baliza, quando o remate dava golo. Aqui e ali, as pancadas com mais moderação das bolas de bilhar, a fazer jogo para o "61" ou para a "machiqueira".




Queimadas de Cima e de Baixo: duas ruas castiças paralelas onde pontuavam as sedes dos "Guerrilhas" e do CF União. E "A Ginja", ao lado da casa do popular Romão, que dava uns jeitos como massagista e alugava fardamentos a equipas de futebol de Verão.
Como empregado que aguentava o negócio praticamente o dia inteiro, Jana desdobrava-se na troca de moedas grandes por moedas de escudo destinadas ao mealheiro da "roleta" e a novo jogo. E acorria com rapidez ao chamamento  para "abrir o bilhar": colocava devidamente as bolas dentro do triângulo de madeira enquanto os rivais discutiam o jogo anterior e se desafiavam para o que viria depois, rodava o manípulo do relógio para dar início à contagem do pagamento final à casa e um dos jogadores avançava com a tacada de saída. Mas Jana também despachava clientes no bar, à base da cerveja e da laranjada entre a malta mais jovem.
"A Ginja" tinha por patrões os filhos do "Lentilha", governando a casa cada um deles nas várias fases do negócio, com melhores ou piores resultados.
 
Entrou por acaso e saiu 45 anos depois

Terminada sem prejuízos a carreira na "Ginja",
o popular Jana (de boné e camisola verde) vai
recordando os velhos tempos.
Como foi bater Jana àquele emprego?
Na segunda metade dos anos 50, andava pelos seus 16, o jovem empregou-se na serragem pertencente a um "venezuelano" que se encontrava impedido de regressar àquele país e que abriu então esse negócio num terreno atrás do Cine Jardim, popular cinema à Rua do Carmo. Um dia, na lida profissional, fez uns talhos nos dedos com gravidade. As cicatrizes persistem hoje, bem visíveis. Precisou então de tratamento na companhia de seguros, sita na Rua da Sé. Depois dos curativos, passou pela Rua da Queimada de Baixo, reparou na azáfama da "Ginja" e sentou-se no portal a ver aquilo. Pouco depois, um homem que saía da casa reparou nele e atirou-lhe sem mais:
- Queres trabalhar?
- Sim senhor - respondeu sem hesitar, com o subconsciente a tirá-lo das perigosas ferramentas da serragem.
Entrou logo a trabalhar, para só deixar a "Ginja" 45 anos depois, quando a casa foi vendida.
Jana tornou-se uma figura popular no Funchal inteiro. Pequeno de corpo, usava a sua voz metálica e firme para manter a disciplina quando as peripécias dos jogos ameaçavam exaltar os ânimos. Consequência de uma dessas situações é a cicatriz que hoje, com 71 anos, tem à vista no nariz. Foi um dia em que o Alvarinho, banheiro e nadador salva-vidas do Lido, reagiu mal quando, depois de ganhar 50 escudos à "machiqueira", numa "negra", percebeu que o adversário derrotado se preparava para lhe "dar coice", ou seja, partir sem pagar as apostas perdidas. Alvarinho, rapaz de bom coração mas avesso a espertezas, pensou em resolver a questão com um "carimbo" de rabo de taco no dorso do rival. Jana, que se chegava para evitar o pior, acabou por ter de recorrer às urgências.
- Mas o Alvarinho pagou-me todas as despesas da farmácia - enaltece Jana, ainda hoje.
Noutra ocasião, foi o próprio Jana a integrar o elenco de protagonistas da zaragata que ali se gerou. Da sua parte, pregou com uma garrafa de vinho, cheia, na cabeça do sujeito a neutralizar e pronto. Quando a polícia chegou, deu-lhe razão. Claro que andou uns tempos "a pau", temente de uma vingança "à falsa fé".
Mas tais situações de conflito registavam-se de séculos a séculos. O ambiente raramente se deteriorava. Jana sabia levar o freguês que tentava justificar uma derrota dizendo que o bilhar estava a "descair". Além de estudantes e trabalhadores do coração do Funchal, vinham uns lojistas da Rua do Carmo e muitos braçais depois do serviço no porto, juntando-se todos naquele cenário característico, sem paralelo na cidade. As outras casas dedicavam-se quase exclusivamente ao bilhar.
- Cheguei a vender 50 litros de vinho numa noite - diz Jana, referindo-se a um período em que praticamente explorava o negócio como se fosse o patrão - Alguns dos tais rapazes da Rua do Carmo tinham vinho caseiro. Eu criava coelhos... Comprei um fogãozinho de duas bocas... E então havia patuscadas todos os dias. A mesa para comer era um bilhar velho que eu tinha lá bem no fundo da sala.

O Vadio que tinha jogado a back do União ajudava-o na cozinha, mas era preciso vigiá-lo. Fazia umas partidas... Um dia levou um saco de pão que um freguês tinha deixado a guardar, causando um sério embaraço à casa. 

Quando o bowling apareceu
na cave do "Café Funchal"

Já com os anos 60 no alto, apareceu na cave do "Glacier" (actual "Café Funchal") uma sala de jogos com bowling e matraquilhos, daqueles bonecos sem pés e com bolas de cortiça. E "A Ginja" tremeu. A clientela das Queimadas desceu o Largo da Sé, para experimentar as mesas modernas. A malta do Caroço, do Lisbonense e até do Liceu, mais distante, concentrava-se na novidade, para jogos a escudo enquanto as namoradas esperavas no café ou à conversa nos grupos que enchiam a placa da Avenida Arriaga. Mas por fim aconteceu que o gosto pelas salas alastrou. E houve freguesia para todas.
Em determinada fase, Jana ganhava uns simples 750 escudos, menos do que o vencimento da mulher, empregada na Electrónica, Rua Fernão de Ornelas. O negócio extra das patuscadas é que lhe compunha mais o bolso. Ainda pensou duas vezes quando um "banqueiro" do Estreito de Câmara de Lobos lhe propôs 15 contos de renda por um quartinho nos recantos escondidos da casa, para fazer o jogo-do-bicho, mas acabou por cancelar o negócio.
- Isto não é meu. Se fosse...
O dinheiro não era tudo. Também na "Ginja" chegou a transpirar o aliciamento ao consumo e ao tráfico de droga. Mas Jana cortava pela raiz tentativa a tentativa.
- Quando me apercebia de qualquer coisa, punha tudo na rua. Na "Ginja" não entrava droga!
Já muito mais tarde, o sr. José da barbearia, proprietário do "Gato" na Queimada de Cima, ofereceu-lhe uns bons contos a mais do que ganhava na "Ginja" para que se mudasse e tomasse conta do seu salão de bilhares. Rejeitou.
- Eu na "Ginja" era rei e senhor, entrava e saía quando queria. Deixava um colega a tomar conta daquilo, nas horas mais fracas, e ia dar as voltas necessárias. No "Gato" eu de certeza que não podia abandonar a sala um minuto. Eram tantos bilhares!

Adeus à "Ginja"

Dos jogos a escudo à venda de ouro: as tradições antigas deram lugar a modas modernas.
Quase meio século depois de ser contratado, eis que o carismático Jana, tão conhecido das gerações mais antigas, foi chamado ao patrão, filho do "Lentilha". Faz 9 anos.
- Vamos vender a "Ginja".
- Os senhores é que sabem - respondeu o empregado, ansioso por conhecer que destino tinham reservado à sua vida.
Dadas as circunstâncias, as coisas não podiam ter corrido melhor. Prometeram-lhe - e pagaram - um mês por cada ano de serviço, como se impõe. E assim recebeu 45 meses de ordenado. Depois, o sistema da reforma fez o resto.
"A Ginja" não abre portas desde essa altura. O novo dono, que teve o "Bar Pinga" na Rua Direita (hoje instalações administrativas do governo), parece preparar obras no prédio, que atravessa o quarteirão até à Rua da Queimada de Cima, onde o Prof. José Moniz explorou a Teledesporto, casa de artigos desportivos, com a colaboração do antigo e categorizado árbitro de futebol Albino Rodrigues.
Cheio de vigor e com aspecto de "jovem" nos seus 70 e poucos, Jana diz-se feliz da vida. Lembra-se dos bons jogadores de matraquilhos e bilhar que frequentavam a velha casa, sobretudo aquele rapaz do Porto Santo que veio estudar para o Funchal e que raramente perdia uma "roleta" a 2$50 por fora.
Foi esse rapaz que começou aquele número na frente, com a bola presa por baixo da cabeça do boneco do meio, a mexer para cá e para lá... Dava sempre golo. Só muito tempo depois arranjaram defesa para essa jogada.
Nas horas mortas da sala de jogos, o empregado Jana também participava numa partida de roleta, para queimar tempo e fixar clientes. Hoje é cartas. Quando vai com a mulher visitar a filha, que mora em Gondomar, procura os seus amigos nortenhos frequentadores dos espaços  criados pelo major Valentim Loureiro para o efeito. Eles então dizem: "Lá vai o Jana para a Madeira gabar-se de que ganhou à gente".
- Mas não faço isso. A verdade é que dou as minhas malhas em Gondomar. Mas levo outras.

Lá vai Jana castiço à sua vida, deixando a baixa do Apolo para rumar à Rua João Tavira. Fica uns momentos neste grupo de amigos, mais um bocadinho naquele grupo. Vejo-o embicar à João Tavira e deitar um instantâneo rabo de olho para a perpendicular Rua da Queimada de Baixo, onde passou 45 anos da sua vida. Sigo-lhe os passos. A porta da antiga "Ginja" ainda provoca um lembrete a tempos de estudante, mesmo sem o barulho das bolas de roleta e de bilhar. Mesmo sem as discussões nem o sorriso largo do amigo Romão dos equipamentos de futebol.

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